Recentemente, nas diferentes redes sociais, percebemos o interesse sobre o tema da prática de furtos realizados especialmente por adolescentes e jovens nas mais diferentes lojas. O canal do YouTube “Matando Matheus a Grito” (@matandomatheus), abordou esse fenômeno de modo crítico, sobretudo após uma experiência feita pelo canal a respeito do modo como as pessoas não buscam as fontes sobre notícias e produções, criando uma música utilizando inteligência artificial generativa sobre o assunto e o termo "clepto girls", que se tornaram rapidamente um conteúdo viral e, desde então, compartilhado e comentado no mundo virtual e na grande mídia.
A prática de furtos em lojas não é propriamente uma novidade. Muito menos quando realizado por adolescentes, jovens e adultos de todas as idades. As intenções também podem ser as mais variadas, passando ora pelo desespero da necessidade, ora por transtornos da psiquê, ou mesmo como um comportamento deliberadamente transgressor da ética, moralidade e leis.
O que faz do fenômeno atual algo diferente (até mesmo pela inexistência das redes sociais no passado) é o fato de se criar uma cultura em torno da prática. Nessa cultura não há a menor sombra de uma ideologia social ou política, seja ela de natureza contestatória às relações contemporâneas de produção, distribuição da riqueza e consumo ou de reação às agressões ambientais delas decorrentes. O que ela faz é ressignificar o furto, tentando simbolicamente retirar dele o caráter de crime, adotando para isso termos como “colheita” e “mirtilagem” e estabelecendo uma sociabilidade com o compartilhamento de experiências, dicas e tutoriais. E claro, como toda a cultura, uma identidade.
E por que tem aumentado o número de jovens, sobretudo os de classe média e alta, envolvidos na prática? As razões podem ser variadas o bastante para não caberem nesse artigo. Mas algumas pistas são oportunas. Em primeiro lugar, vivemos uma espécie de cleptocultura. As notícias constantes de corrupção na política e nas instituições sociais e a impunidade que as caracterizam, têm naturalizado que determinadas transgressões à lei podem ser plenamente aceitáveis como parte de uma engrenagem que se autorregula. Nas grandes mídias, produções dão outras colorações ao crime organizado, cujos personagens passam a ser vistos como anti-heróis.
Mas não é só. Adolescentes e jovens contemporâneos são mais suscetíveis ao desejo de experimentar comportamentos disruptivos, sobretudo em um mundo virtualizado que vem retirando as formas de vivências sociais autênticas e substituindo-as por um imenso vácuo e busca de sensações sem propósito. Também é nessa faixa etária que aflora a necessidade de afirmação, de construção da identidade e a forte necessidade de pertencimento. Ou seja, alvos dóceis e desesperados por afirmação. Para isso, nada melhor do que um grupo que preencha todas essas lacunas.
Assim, viver a experiência do furto em nossa cleptocultura (com sua ampla permissividade) dá a oportunidade de experienciar física, mental e emocionalmente as sensações desencadeadas pela exposição ao risco, o prazer de executar e a recompensa simbólica pelo reconhecimento do grupo de pertença. No fundo, esses grupos sabem se tratar de um crime de menor poder ofensivo e se escoram (ilusoriamente) no princípio da insignificância. O pior é que esse comportamento tende a escalonar para quantidades cada vez maiores de furtos e de objetos também cada vez menos “insignificantes”.
Além disso, muitos adeptos sabem também que quesitos raciais e econômicos tendem a separar profundamente a percepção dessa experiência entre mera traquinagem e o delito. Ou seja, é uma experiência aparentemente controlada. Todos naturalmente sabem se tratar de um crime. Porém, em nossa cleptocultura, cristalizou-se a certeza de que uns terão dinheiro, influência e o tom de pele adequados para não sofrerem com desconfianças, estereótipos, abordagem vexatórias, violentas e punições.
De todo o modo, é importante que os pais ou responsáveis se interessem mais ativamente por seus adolescentes e jovens. Deixá-los de modo indiferente à deriva e à própria sorte, jogados convenientemente em seus próprios nichos, tem causado danos às vezes irreparáveis para eles e para os outros. As notícias falam por si.
E é bom lembrarmos que nada disso tem a ver com a cleptomania, psicopatologia complexa, que pode combinar causas orgânicas e existenciais, cuja compulsão é dolorosa para quem a tem e vem carregada de vergonha e culpa, demandando tratamento psicoterápico.
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